terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Paris

Eu sempre soube que era alguém sem sonhos, sem memória e sem imaginação. Nunca consegui imaginar como seria amanhã, qual profissão teria, quais viagens eu faria, se eu encontraria um grande amor. Talvez eu nunca tenha conseguido sonhar exatamente porque não tenho imaginação. Quase não tenho desejos também. Claro, sei quando estou feliz, quase sempre. Isso é um acaso, porque quase não sei o que me deixa feliz.

Pode parecer que sou uma pessoa mais triste por isso. Não sou. Me esqueço quase sempre com facilidade das tristezas, não me frustro porque não espero muito de nada nem de ninguém. Sou, entretanto, um estorvo para quem quer que eu me decida. Mas, depois de 24 anos, tenho certa certeza do que não gosto, o que, como dizem os consoladores, já é um começo.

Minha quarta deficiência – além da falta de sonhos, de memória e de imaginação – é a visual. Não vejo nada, ou praticamente nada. E aquilo que vejo me foge em pouquíssimos segundos. Fui ao médico, e não tenho tantos graus de miopia assim (só quatro). A conclusão óbvia é a de que sou vazia e quase anestesiada. O que faz todo sentido, não fosse outra idiossincrasia: não conheço ninguém capaz de se apaixonar tanto e tão instantaneamente, paixões de trinta segundos, de um minuto, de semanas, e até paixões de anos – ainda que a memória me falhe, há certas coisas e pessoas que simplesmente se mantêm. E, como todos sabem, paixões pelo bonito e pelo feio, pelo lindo e pelo horroroso.

Paris não foi paixão de minuto. Não será eterna, já sei, porque já começo a esquecer exatamente o que fiz lá, o que vi... Mas talvez alguma fagulha da maravilha que lá vivi permaneça eternamente. Foi até agora o que mais me impressionou nessa Europa. A Torre Eiffel é muito melhor do que se pode imaginar, e o meu coração desavisado, que se esqueceu de imaginar e se preparar, foi pego num susto só. Principalmente quando anoiteceu e a torre se acendeu. O Louvre é como nos melhores filmes, e a Mona Lisa é mesmo pequena, mas ainda assim uma graça de mistério. A múmia egípcia, por outro lado, era mais feia do que imaginei quando li os livros Ramsés e a Pedra da Luz, mas me fez lembrar mamãe, que, ao contrário, é linda. (Ufa, evitei piadinhas, aqui, hein?) Achei lá a estátua do Ramsés, inclusive, e procurei desesperadamente o Radamés, mas sem sucesso. Pensei em tirar uma foto de uma estátua sem cabeça e gigante e dizer que tinha o nome do meu pequeno gigante irmão, mas achei que ele poderia descobrir o truque. Rs. Vi Versailles, e foi fácil entender como podia haver tanta gente nas cortes do reis. É tão grande que não tem jeito de explicar. Por azar, os jardins estavam fechados devido à neve. Mas não achem que a culpa é da minha amada neve. A culpa é dos franceses, que são frescos.

(obs.: os estudantes de intercambio na Europa que forem visitar a França, não esqueçam o passaporte no hostel. Ele pode garantir entradas grátis a partir do carimbo de visto, como em Versailles).

E aquela história de que os franceses são descorteses? Besteira. Não sei se já estou habituada demais à delicadeza elefantal alemã, mas não tenho nadinha a reclamar.

Por fim, tive a sensação de que, mesmo sem sonhos, tendo vindo à Europa por mais um golpe do destino, mesmo sem memória e sem esperanças, há sempre algo que posso experienciar sem sequer entender. E há tudo que não é palpável, que não fica na memória, mas que eu pude respirar. Eu não nasci pra ver, porque não é dessa matéria que sou feita. Sou só tomada por arroubos, que por vezes não posso controlar. E Paris foi sim um arroubo, foi falta de fôlego, é, mais uma vez, a beleza que, de tão bela, me entristece.

Essa sou euzinha em cima da Torre Eiffel. Não dá pra ver que é lá, mas dá pra acreditar, pelo meu sorriso bobo.

Queria que alguns de vocês tivessem comigo, pra me ajudar a ver.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Ela e o gosto de biotônico Fontoura

Ela foi embora sem olhar pra trás. Há tempos eu tentava aprender essa habilidade, e nunca consegui. Ela simplesmente se vai, não pára para pensar, não diminui o passo, não se detém fingindo que está arrumando o cabelo, nada. Nas pequenas despedidas, isso já sempre me incomodou. De manhã, ela saia pro trabalho, com o seu sempre ar de importância. E não se virava para mim, não dava o “tchau” tardio e cretino. Uma vez decidi a observar por mais tempo. Sempre acreditei que, em algum momento, em que eu não estivesse olhando, ela me jogaria a sua saudade indigna. Não. Não fez. Ela é totalmente capaz de ir embora sem fraquejar. Quantas vezes, então, ela entrou em um táxi e passou ao meu lado? Ela se lembrou de que eu estava na rua à espera de qualquer sinal de paixão infantil? Talvez. Mas mesmo assim não recebi nada em troca da minha esperança por migalhas.

Houve alguns momentos em que tive que ir embora. Poucos, mas por vezes bastante intensos, com gosto de ferro do biotônico Fontoura. Eu sabia que ela não ia me olhar descer as escadas, por exemplo. Quando eu me virava para despejar sobre ela toda a minha fraqueza, a porta já estava se fechando, e ela talvez já estivesse à procura do controle remoto. E eu só queria o ultimo olhar. Parei, então, de pedir por ele nesse silencio sufocante da derrota diária. Eu me decidi a alcançar os brios a que ela já estava tão acostumada. O que, de qualquer forma, era impossível. Eu já tinha descido a indignidade tantas vezes ao sempre me virar numa expectativa que caiu repetidamente por terra, que nada diminuiria meu crime. De qualquer maneira, ela nunca saberia que eu fazia tanto esforço para segurar os músculos do meu pescoço. Talvez ela nunca sequer soubesse que eu me virei, que eu deixei de me virar ou que essa pequeneza era tão importante pra mim. Mas eu queria que, se algum dia ocorresse a ela pensar nisso, que eu fosse sempre um símbolo de quem nunca se curvou desgraçadamente às ânsias do amor, como ela era. Ou de quem talvez nunca nem mesmo tivesse tido ânsias tão baixas, ela.

Mas na partida derradeira, nessa sim, nessa eu merecia um olhar que fosse, de consolo, de tristeza, de desgaste, de alegria, de olhar. Eu queria só um olhar de olhar. E acompanhei quando ela entrou, quando se sentou, quando tirou seu casaco. Esperei longos e cansativos cinco minutos. Ela não se lembrou de que eu poderia estar ali ou não quis perder a dignidade solene do momento em que eu, em pé na estação, olhava para dentro do trem como se procurasse algo. Eu não procurava nada, queria que me encontrassem. Por fim, faltavam ainda três minutos para a partida. Me aprumei e desci as escadas. Afinal, ela havia demonstrado mais uma vez que a postura na despedida é maior que a própria despedida. E eu, inconsolável, não queria que ela fraquejasse no ultimo minuto e visse que fraquejei por minutos seguidos. Me detive, de qualquer maneira, no andar de baixo. E ouvi o trem dando a partida. Ouvi com os olhos e meu rosto estava de novo na direção oposta a do meu corpo. Mas ela não saberia.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Ela e o Vegetal

A gente se entende tão bem que até dói. Aqueles clichês mesmo a que já se acostumou a literatura. Ela vê, eu penso. Ela estuda, eu aprendo. Ela geme, eu sinto. E eu sei sempre que sempre estou fazendo coisas erradas. Porque eu a entendo tão bem quando ela finge que eu sou só mais alguém que ela encontra na rua todo dia. Porque ela não se lembra nunca do que a gente combinou ontem. Porque ela fala comigo por pena da minha completa incapacidade de acompanhar o raciocínio social mais lógico. Porque ela tem tanta paciência pra me explicar qual a diferença entre os adesivos que ela quer colocar nas paredes, que pra mim já estão bonitas do jeito que estão. Mas ela diz que são sem vida, e por isso sei que estou sempre fazendo coisas erradas. Eu sou sem vida. Só tenho vida mesmo em algum lugar dentro da minha cabeça, mas fico vegetando o resto do tempo.

E a gente se entende tão bem que até dói. Aqueles clichês que as músicas de romance devem descrever, mas que eu nunca ouço. Porque me dói que eu não entenda esses clichês como eu gostaria. E me dói mesmo que ninguém acredite que as coisas me doem. E aí eu sei como se sentem as árvores quando tatuam nelas corações com letras dentro. Dói, até nos vegetais. Ela entende, entretanto, quando me dói. Às vezes ela finge que não entendeu, porque ela sabe que eu não me acostumo com essa mania que ela tem de me ler. E ela quer que eu fique confortável, quase sempre. Quase sempre. Mas eu estou mesmo sempre fazendo coisas erradas até como vegetal. No verão eu não tenho a sombra que ela gostaria. E eu nem gosto tanto assim de verão. E ela tem aquele olhar de dúvida de sempre. Nunca sabe se deve sentar debaixo de mim mesmo assim, porque eu valho a pena por algum motivo que só ela entende. Ela tem paciência, isso sim é o que ela tem. Todos dizem que não. Que ela é agitada, que pensa tão rápido que esquece o que pensou. Mas eu sei que ela tem paciência.

E a gente dói tanto que até se entende. E ela faz greve de mim, vez ou outra. Não quer me atender, não quer me ver. Diz que não fala com coisa verde, que isso é coisa de doido. Mas eu espero. Eu sempre espero. Porque eu gemo, e ela sente.